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Blog do Dr. Cristiano Nabuco

Difícil de aceitar a covid-19? 5 estágios do luto ajudam a explicar por quê

Dr. Cristiano Nabuco

19/05/2020 04h00

Kristina Tripkovic – Unsplash

Trabalhando com a psicologia humana há quase quatro décadas, tenho aprendido bastante a respeito de como nossa mente reage frente às situações de grande estresse.

A psiquiatra Elizabeth Kluber-Ross há tempos descreveu as fases do luto, ou seja, os estágios pelos quais passamos, quando somos impactados com grandes perdas emocionais. E aqui vale uma análise, à luz da covid-19 e dos impactos que a doença causou em nossa vida.

Invariavelmente, segundo ela, adotamos uma posição inicial de negação do ocorrido, como se tivéssemos a necessidade de ganhar um tempo extra para a acomodação das coisas e assim podermos absorvê-las com mais facilidade, apesar do dissabor e da interrupção criada na vida. Isso explica, em parte, a razão pela qual muitas pessoas ainda, no momento atual, se recusam a aceitar os impactos que a pandemia vem nos causando no cotidiano. Muitas delas, dessa forma, continuam a viver como "se nada" de mais importante, de fato, estivesse acontecendo, apesar das evidências ao contrário. Estas minimizam as mortes, dizendo, por exemplo, que a doença, se é que existe, é fruto de uma grande teoria chinesa da conspiração para a supremacia e domínio mundial, por exemplo.

Outros, por sua vez, já tendo assimilado os fatos que compõem a nova realidade, reagem, caminhando adiante, em direção ao segundo estágio da compreensão do fato, que é, invariavelmente, marcado pela presença de sentimentos de raiva e de indignação a respeito dos acontecimentos. Estes, por sua vez, não hesitarão em culpar as autoridades por sua inoperância frente à covid-19 ou ainda pelo fato de ser impossível ficar restrito dentro de casa por longos períodos de tempo, pois, afinal, a "vida precisa continuar". São esses, inclusive, que vemos nas ruas, insistindo em agir como se nada de mais significativo estivesse ameaçando-os efetivamente e, mais, se recusam a ficar em casa, achando motivos dos mais variados para furarem os isolamentos sociais.

No caminho da mudança psicológica, alguns outros exibirão um comportamento de barganha, ou seja, a mente individual começa a criar uma interpretação ficcional da covid-19, tentando achar métodos de controle do vírus, isto é, em tal fase as pessoas acreditarão que certas ações poderiam vir a anular a letalidade da pandemia. Talvez acreditando que elas são, particularmente, mais fortes ou até invulneráveis à doença e, embora sabendo bem dos riscos, seu pensamento mágico os faz, por exemplo, sair às ruas sem máscaras ou sem tomar os cuidados recomendados para sua proteção individual ou familiar. Neste ponto, a realidade é distorcida para caber em sua mente e em suas explicações fantasiosas da doença.

Na quarta fase de aceitação, provavelmente, a covid-19 não terá mais espaço para alegorias ou explicações paralelas e o presente poderá evocar uma profunda sensação de depressão e vazio existencial. Desta forma, o isolamento, finalmente emocional, vai ocorrer e a sensação de cansaço e profundo desânimo tomarão lugar no horizonte psicológico dessas pessoas. Muitas vezes, os sentimentos de desamparo serão tão expressivos que o indivíduo acreditará que não terá forças para sair da condição e assim poderá naufragar por momentos específicos ou por longos períodos de tempo.

Na última etapa da mudança psicológica, muitos poderão estar flertando com a aceitação da doença, entendendo ser importante que seja criada uma nova acomodação mental dos fatos e, para tal, efetivamente incorporam a mudança de realidade, agora compreendendo que a superação, em algum momento, trará alívio e que é momento de reorganizar as ideias e deixar o solo devastado para trás, dando a oportunidade para que a dor e o desconforto emocional possam ir, progressivamente, desaparecendo. Nesta fase, os indivíduos já absorveram a ideia do grande impacto que sofremos e começam, apesar de todos os reveses, a se preparar, pensando em como viver melhor no momento atual e ainda, se preparar mais construtivamente para contornar os efeitos que a pandemia nos impôs.

Para se pensar

Ao nos depararmos com as distintas fases de assimilação dos fatos, conforme relatado acima, conseguimos melhor compreender a razão pela qual ser uma das tarefas difíceis acreditar que todas as pessoas viverão igualmente um mesmo nível de entendimento e de compreensão daquilo que hoje nos afeta. Enquanto muitos estão na fase da negação, outros estarão na fase da depressão, por exemplo, enquanto outros ainda, já se encontrarão no momento da aceitação. Isso, portanto, nos faz lembrar que o trânsito emocional ocorre de maneira distinta e particular de pessoa para pessoa – com tempos de duração e de intensidades diferenciados – fazendo da compreensão social ampla e igualitária uma condição bastante rara de ser atingida.

Com isso tudo exposto, aprendi na prática da psicoterapia que tudo na vida sempre traz um outro lado da moeda às pessoas, ou seja, os grandes dilemas humanos com os quais a maioria das vezes nos deparamos e que trazem grandes doses de sofrimento, na verdade, também oferecerão importantes janelas de oportunidades e maturação pessoal. Isso quer dizer que, com raras exceções, a maioria das pessoas usualmente consegue sair mais fortalecida das adversidades e penso eu, particularmente, ser esse momento de pandemia um momento único de amadurecimento.

Eu explico.

Tanto as pessoas que estão se sentindo mal com tudo que está acontecendo como aquelas que estão lidando melhor – até bem, eu diria , com esse momento, levarão importantes lições de vida. Excetuando aquelas que sofrem pela doença ou que não dispõem de recursos econômicos para o dia de amanhã, o mal-estar que a covid-19 está trazendo é um poderoso convite à transformação pessoal.

No caso de estarmos nos sentindo muito mal, vale dizer que, usualmente, temos uma dificuldade muito grande de olhar para as nossas atribulações e, assim, lançamos mão de uma série de recursos de proteção como, por exemplo, trabalhar em excesso para não sentir as angústias, comprar desnecessariamente para se distrair das sensações ruins, consumir álcool ou drogas e uma série de outros comportamentos que visam anestesiar o sofrimento pessoal. Todavia, trancados em casa, os véus do autoengano mandatoriamente começam a cair, pois a vida, como nunca, estacionou completamente, nos trazendo a possibilidade de olharmos para nós mesmos de uma maneira mais lúcida e objetiva. Estamos, na verdade, de frente para o espelho de nossa existência e nele será refletida, sem os subterfúgios psicológicos do cotidiano, a vida real como ela é.

No outro extremo, ou seja, junto àqueles que estão se sentindo bem, percebeu-se que o confinamento descortinou novas formas de existir, isto é, como se pudessem agora mais facilmente constatar que viviam em um tipo de "prisão às avessas", ou seja, aquilo que na verdade era tido como a realidade comum/normal de seu cotidiano, no fundo, era uma forma de limitação e de aprisionamento. Muitos, assim, estão se sentindo livres das obrigações e da vida engessada, apesar das dificuldades que a pandemia lhes traz, pois agora podem olhar para dentro e perceber o quanto que a vida "normal", no fundo, era profundamente insatisfatória.

Portanto, seja para os que estão se sentindo bem, como para aqueles que estão se sentindo mal, creio que grandes mudanças começarão a tomar lugar dentro de cada um e, no final das contas, essa metamorfose pessoal em larga escala será responsável por profundas transformações sociais. De fato, talvez não estejamos vivendo o final do mundo, como muitos acreditam ser, mas, na verdade, um novo grande começo individual e coletivo da humanidade.

Sobre o autor

Cristiano Nabuco é psicólogo e atua em consultório particular há 32 anos. Tem Pós-Doutorado pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Atualmente trabalha junto ao PRO-AMITI do Instituto de Psiquiatria do HC/FMUSP; Coordena o Núcleo de Terapias Virtuais (SP) e o Núcleo de Psicoterapia Cognitiva de São Paulo. Foi Presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC). Publicou 13 livros sobre Psicologia, Psiquiatria e Saúde Mental.

Sobre o blog

Neste espaço, são discutidas ideias e pesquisas sobre comportamento humano, psicologia e, principalmente, temas que se relacionam ao cotidiano das pessoas. Assuntos centrais na construção de nossa autoestima, felicidade e vida. Seja bem-vindo(a)!