Qual o limite de exposição às telas digitais?
Dr. Cristiano Nabuco
22/10/2019 04h00
Getty Images
Aqui está uma pergunta que a maioria de nós, em algum momento, irá fazer.
Vivemos, de fato, em um momento tão intenso, do ponto de vista tecnológico, que fica realmente difícil não atribuir às novas mídias um papel que não seja, no mínimo, determinante. E obviamente vários aspectos do contato constante com as plataformas digitais contribuem para que ocorra uma grande mudança de valores e mentalidades, principalmente, juntos aos jovens e às crianças em desenvolvimento.
Para começar, vamos lembrar que a forma com a qual os adolescentes de hoje aprendem, brincam e interagem mudou mais nos últimos 15 anos do que nos 570 anos precedentes, ou seja, desde a popularização da prensa por Gutenberg.
Quando olhamos para as pesquisas e descobrimos que as crianças gastam mais do que 7 horas em frente às telas – 11 horas, se tiverem TV em seu quarto, de acordo com uma pesquisa americana, facilmente entenderemos que o tempo livre das gerações anteriores, que era consumido de maneira mais livre e espontânea, hoje é gasto, preponderantemente, à frente dos eletrônicos. Não é de se estranhar então que o "tempo de tela" já tenha ultrapassado as horas gastas na escola ou no sono. (1)
E, o mais curioso, os pais ainda aparentam estar indiferentes ao impacto que isso tudo pode estar ocasionando.
A internet hoje se tornou a principal fonte de tudo aquilo que os adolescentes e jovens necessitam – e até muitos adultos, inclusive -, pois nos fornece "scripts" de como agir nas situações pouco imaginadas como, por exemplo, resolver os problemas de relacionamentos das mais variadas naturezas. (2)
Quem não se recorda do massacre de Suzano? Há outro exemplo mais recente, infelizmente, ocorrido nessa semana, onde outro assassinato, cometido por um pré-adolescente, teve como motivação um jogo de computador. Ao ser questionado em relação aos motivos que o levaram a praticar o crime, o garoto de 12 anos respondeu: "Era fazer igual eu vejo nos jogos, isto é, eu queria ver como era matar alguém". (3)
Assim, querido leitor, pense hoje nas novas mídias como um poderosíssimo educador, um importante modelador de comportamento interpessoal e, mais do que isso, uma excepcional fonte de (des)informação a tudo aquilo que ocorre de maneira precoce e frequente.
Exemplos?
Os conhecidos desafios da "Baleia Azul", "Chocking Game" – onde os usuários seguem os tutoriais da internet ao se pendurar pelo pescoço com uma corda até desmaiar (ou falecer, em muitos casos) – ou ainda nos exercícios de como aspirar pimenta ou talco que resultam em asfixias. (4)
Sim, é isso: tudo aquilo que não falamos aos nossos filhos por falta de habilidade ou mesmo por constrangimento, a web fala, sem qualquer tipo de vergonha e pudor, influenciando mais do que eu ou você, juntos, conseguiríamos fazer (nem vou adentrar aqui nas questões envolvendo os comportamentos sexuais).
Imagino que muitos leitores irão me acusar de exagero ou até de excesso de drama, pois sempre que surge uma nova mídia, os "especialistas reclamam". Assim ocorreu com a invenção da TV ou do telefone e, no final das contas, todos nós estamos aqui, sobrevivemos, sãos e salvos, certo?
Errado.
O que ninguém conta é que as plataformas digitais de hoje se valem de dezenas de recursos extraídos dos laboratórios de psicologia para criar a ciência da persuasão e assim capturar sua atenção e aumentar, ao máximo, o engajamento de seus usuários. (5) Caso você não saiba, atualmente são essas mesmas empresas que valem mais do que as companhias de energia ou petrolíferas – graças ao tempo gasto por seus usuários nas navegações.
Portanto, sinto lhe dizer, mas as plataformas digitais não são neutras, como ingenuamente pensávamos. (6) Não é para menos então que o senador americano Josh Hawley esteja tentando, junto ao Congresso daquele país, banir o que se define como "dark patterns" – ou os chamados mecanismos de manipulação e de indução ao vício digital – presentes em muitas dessas plataformas e apps de nossos celulares. (7-8)
Para se pensar
Assim sendo, eu lhe pergunto: quanto tempo ainda será desperdiçado até que as pessoas possam fazer alguma coisa e proteger as gerações mais vulneráveis? Quantas crianças e adolescentes ainda terão que sofrer as consequências de um cyberbullying até que os cuidadores e as escolas possam colocar a mão na consciência e agir preventivamente? (9)
Quantas pessoas ainda terão que sofrer pressão e constrangimento para agir de uma maneira contrária à sua natureza ou ainda postar compulsivamente nas redes sociais até que, finalmente, possam desenvolver quadros de depressão ou até comportamento autolesivo por não conseguirem se sentir aceitas pelos seus pares? (10-11) A esse respeito, outra pesquisa conduzida junto a 65 mil meninas adolescentes (10-14 anos) mostrou um aumento de 166% nas condutas autolesivas nos últimos anos. (12)
Quantas instituições de ensino ainda demorarão para entender que as novas plataformas digitais, que muitos esperavam fomentar o ensino, na verdade, se não usadas com extrema cautela, conduzirão a uma direção exatamente oposta? (13-14) Sobre isto, muito já foi alertado a respeito da associação entre tecnologia e o decréscimo das habilidades criativas e do pensamento reflexivo mais profundo. (15)
Conclusão
Devo ressaltar que, nem de longe, sou contrário à utilização da tecnologia, entretanto, devemos ter consciência e atenção, pois, da maneira com que temos observado o uso em nosso cotidiano, o pedágio que as novas gerações pagarão por esse desconhecimento, em um futuro não muito distante, poderá ser imenso. (15)
E, retomando a pergunta inicial: qual o limite de exposição às telas digitais? Creio que depois de nossa conversa, querido leitor, você conseguirá ter uma noção um pouco melhor dos riscos envolvidos nas simples navegações, desde as tenras idades até a vida adulta. O problema, obviamente, não são as novas tecnologias, mas a forma com a qual estamos utilizando, completamente descontrolada e pouco inteligente. (16)
Referências
- Rideout V. (2010). Generation M2: Media in the Lives of 8- to 18-Year-Olds. Menlo Park, CA: Kaiser Family Foundation
- Strasburger V. (2019). The Death of Chilhood: Reiventing the Joy of Growing Up. London: Cambridge Scholars Publ.
- https://ricmais.com.br/noticias/crimes-noticias/menino-mata-vizinha-facadas-curitiba/
- http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232017002300867
- https://blog.prototypr.io/how-apps-can-persuade-you-into-doing-something-without-your-knowledge-49a1d3174db4
- https://www.wired.com/story/phone-addiction-formula/
- https://freebeacon.com/issues/hawley-introduces-plan-to-prohibit-addictive-tech-practices/amp/?__twitter_impression=true
- https://www.darkpatterns.org/types-of-dark-pattern
- https://techjury.net/stats-about/cyberbullying/
- https://www.healthline.com/health-news/social-media-use-increases-depression-and-loneliness
- https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/30581202
- https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/2664031
- https://cristianonabuco.blogosfera.uol.com.br/2019/07/16/o-cerebro-digital-como-uso-constante-da-internet-afetando-nossa-mente/
- https://cristianonabuco.blogosfera.uol.com.br/2014/06/10/tecnologia-em-sala-de-aula-computador-ligado-concentracao-desligad/
- http://www.nicholascarr.com/
- https://www.grupoa.com.br/vivendo-esse-mundo-digital-p989873
Sobre o autor
Cristiano Nabuco é psicólogo e atua em consultório particular há 32 anos. Tem Pós-Doutorado pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Atualmente trabalha junto ao PRO-AMITI do Instituto de Psiquiatria do HC/FMUSP; Coordena o Núcleo de Terapias Virtuais (SP) e o Núcleo de Psicoterapia Cognitiva de São Paulo. Foi Presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC). Publicou 13 livros sobre Psicologia, Psiquiatria e Saúde Mental.
Sobre o blog
Neste espaço, são discutidas ideias e pesquisas sobre comportamento humano, psicologia e, principalmente, temas que se relacionam ao cotidiano das pessoas. Assuntos centrais na construção de nossa autoestima, felicidade e vida. Seja bem-vindo(a)!