Realidade Virtual e Saúde Mental
Dr. Cristiano Nabuco
30/06/2015 09h53
O que é a realidade virtual?
A realidade virtual é uma tecnologia que permite ao usuário interagir com um ambiente recriado através de um programa de computador.
A maioria dos ambientes de realidade virtual são experiências paralelas, onde, através de óculos tridimensionais que vão conectados a um computador central, recria-se uma situação virtual exatamente igual à realidade concreta e que, somada à utilização de fones de ouvido, provoca a imersão total do indivíduo em um ambiente planejado.
Muito embora o paciente inicialmente "saiba" que está prestes a ingressar em uma vivência que o levará a um mundo "não real", ou seja, todas as experiências a serem vividas serão oriundas de uma programação digital, bastam apenas alguns segundos de exposição para que o cérebro do usuário seja literalmente "arrastado" à nova realidade, desfazendo de forma imediata e sumária toda a concepção de uma experiência paralela.
Sabe o resultado? O cérebro do paciente reage como se efetivamente estivesse em uma nova situação (real), reagindo, emocionando-se e, finalmente, respondendo como se estivesse, de fato, em uma "nova situação concreta". (1)
Quais problemas de saúde mental podem ser tratados?
Vários problemas já são alvo desse tipo de intervenção. Para citar alguns:
Ansiedade: embora se saiba que a terapia cognitivo-comportamental seja a abordagem de tratamento preferencial a essa categoria de transtorno, as pessoas mais velhas apresentam certas limitações decorrentes da idade, como a diminuição da mobilidade, por exemplo, o que lhes impediria seguir os protocolos de exposição a situações tímidas.
Assim sendo, como a mobilidade pode ser afetada, o problema pode ser contornado ao "se imaginar" as situações temidas, amplamente já testadas em sua eficácia. Entretanto, pessoas mais velhas também apresentam outro fator limitante, que é o decréscimo e uma redução em sua capacidade de visualização, o que seria um novo obstáculo de tratamento.
Como até 25% das pessoas com 65 anos ou mais apresentam diferentes graus de ansiedade, o recurso virtual, além de ser uma promessa esperançosa de tratamento, pois, além dos benefícios já descritos de contornar as limitações impostas pela idade, vai além, ao se constituir de um tratamento não-farmacológico e, portanto, livre de efeitos colaterais mais expressivos. (2)
Uso abusivo de álcool: já existem algumas evidências de que a realidade virtual pode reduzir o desejo das pessoas para uso abusivo de álcool. Por exemplo, em um tratamento descrito, os pacientes foram expostos em um ambiente de realidade virtual que reproduziam cenas compostas de sons, cheiros e, principalmente, de pessoas usando álcool em excesso.
Antes que eles começassem o programa virtual, todos os pacientes foram submetidos à tomografia por emissão de pósitrons (PET) e tomografia computadorizada (TC), o que permitiu aos pesquisadores estudar o metabolismo do cérebro de cada um dos pacientes. Descobriu-se que, por exemplo, em comparação com um grupo de pessoas saudáveis, os pacientes dependentes de álcool apresentaram um metabolismo mais rápido no circuito límbico do cérebro – o que indica uma maior sensibilidade aos estímulos, como o álcool. Entretanto, após a terapia de realidade virtual, os resultados (PET e TC) foram alterados.
De acordo com os pesquisadores, a terapia virtual foi uma abordagem promissora para tratar a dependência do álcool, pois colocou os pacientes em situações semelhantes à vida real e, dessa vez, dentro um ambiente controlado e mais seguro.
Concluem os pesquisadores, dizendo que a terapia virtual pode ser mais "delineada" para cada caso, ao ajudar, além dos fatores já mencionados, ajudar os pacientes a permanecerem abstinentes e assim evitar as conhecidas "recaídas". (3)
Estresse pós-traumático: feito de maneira correta, a exposição a memórias de eventos traumáticos pode levar a uma redução de Transtorno de Estresse Pós-traumático (PTSD). Nesses casos, a exposição ajuda o processo do paciente em se habituar às memórias ligadas aos eventos traumáticos que são carregados de fortes emoções e que, portanto, são evitadas ou bloqueadas pelo paciente, o que não o ajuda em seu processo de cura ou de superação emocional.
Um estudo descreve o tratamento de um sobrevivente dos ataques de 11 de setembro do World Trade Center que desenvolveu um quadro agudo de estresse pós-traumático e que, após ser tratado com a técnica de dessensibilização por imagens, não havia respondido ao tratamento.
Submetido ao tratamento de realidade virtual (seis sessões com a duração de uma hora cada), apresentou 83% de redução da depressão e 90% de redução nos sintomas após a finalização do tratamento. (4)
Outra pesquisa relata o uso da terapia virtual em militares que retornaram da guerra do Iraque, uma vez que parte expressiva dos soldados apresentavam estresse pós-traumático. Após o tratamento virtual, resultados significativos de melhora foram identificados. (5)
Medo de avião: em média, segundo dados da IATA, mais de 8 milhões de pessoas voam por dia no mundo e, apenas em 2013, mais de 3 bilhões de pessoas fizeram viagens de avião. Em 2014, estima-se que 3.3 bilhões de pessoas tenham constituído o grupo de usuários das malhas aéreas mundiais, o que equivale a dizer que aproximadamente 44% da população do planeta se deslocam por avião.
Segundo estimativas do National Institute of Mental Health (NIMH) dos Estados Unidos, o medo denominado de "aviophobia" (ou fear of flying – "FOF") atinge cerca de 6,5% da população, o que representa naquele país cerca de 20 milhões de pessoas. Se as mesmas estatísticas forem aplicadas junto à população mundial, teremos então, no mundo, 210 milhões de pessoas que apresentam a referida fobia.
Em um estudo que comparou duas formas de intervenção com terapia virtual em 86 indivíduos que sofriam de medo de voar, a terapia virtual apresentou resultados semelhantes à terapia cognitivo-comportamental, além do fato de que a terapia virtual, diferente de outras formas de tratamento, tem se mostrado a mais efetiva na redução da ansiedade antecipatória (aquela que se manifesta antes da experiência de voar). Para concluir, a relação custo- benefício da terapia virtual pode ser superior aos outros tratamentos, sugerem os pesquisadores, colocando-a à frente das demais modalidades de intervenção. (6)
No Brasil, o tratamento de fobia de avião, por exemplo, já é oferecido. (7)
Autocrítica: no estudo publicado no periódico PLoS ONE, 43 mulheres saudáveis, mas excessivamente autocríticas, experimentaram algumas trocas de papel (um corpo virtual de tamanho natural substituindo o seu próprio, por exemplo), sendo-lhes então possibilitado viver certas experiências a partir da perspectiva digital.
Virtual environment used in the experiment: (A) suit and and head-mounted display; (B) view of child avatar when embodied in adult avatar; (C) view of adult avatar when embodied in the child avatar (1st person perspective); (D) external view of child and adult avatars (3rd person perspective).
Na sequência, as participantes, após reconhecerem seu próprio corpo, encontravam na vida virtual uma criança que estava muito angustiada e que chorava, mas que, posteriormente, recebia muita atenção.
Depois de alguns minutos, o primeiro grupo de participantes (grupo 1) foram então transferidas para o corpo infantil virtual e, a partir dessa perspectiva, recebiam o afeto que outrora entregavam enquanto adultas a essa criança, recebendo assim suas próprias palavras e gestos de ternura e amabilidade.
O outro grupo (grupo 2) observara a mesma experiência, entretanto, sem mudarem de papel (como se estivessem apenas assistindo a uma interação entre um adulto e uma criança).
Ambos os grupos foram classificados pelos diferentes estados de humor e por traços de personalidade (antes e depois do experimento).
Os resultados apontaram que as mulheres que passaram pela experiência de receber a afetividade através da criança virtual, se comparado ao outro grupo que apenas assistiu às interações, apresentaram uma diminuição expressiva da autocrítica, um aumento da autoestima e, finalmente, uma expansão geral do bem-estar.
Concluem dizendo que a vivência na vida virtual e a possibilidade da troca de papéis pode servir de um verdadeiro "divisor de águas", uma vez que o excesso de autocrítica desempenha um papel proeminente no desenvolvimento e manutenção de muitos problemas de saúde mental, incluindo a depressão. (8)
Para se pensar, não acha?…
Conclusão
Acredita-se que a terapia baseada em realidade virtual irá tornar-se, progressivamente, um tratamento de baixo custo em um futuro não muito distante. Além disso, os resultados têm sido tão animadores que eu arriscaria afirmar que as formas tradicionais de psicoterapia que conhecemos hoje podem vir a sofrer uma poderosa interferência e, rapidamente, impactar a forma de se pensar o processo de ajuda humana.
Eu penso, inclusive, que, se podemos levar nossos pacientes ao mundo virtual, nada nos impede que nós, os profissionais de saúde (psicoterapeutas), também possamos adentrar nesta nova realidade e, quem sabe, dar os primeiros passos naquilo que eu denominaria de "matrix psicoterapêutico" (uma alusão ao filme já conhecido de realidades paralelas, entretanto, dentro de uma perspectiva da ajuda psicológica humana) e, assim, podermos prestar serviços em qualquer lugar do Planeta, ao romper as barreiras do tempo e do espaço.
Ingenuidade de minha parte? Talvez… Quem viver, verá.
Referências bibliográficas
- http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/10175343
- http://journals.cambridge.org/action/displayAbstract?fromPage=online&aid=9792790&fileId=S1041610214002300
- http://medicalxpress.com/news/2015-06-virtual-reality-alcoholism.html
- http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.9.7172&rep=rep1&type=pdf
- http://www.livescience.com/47258-virtual-reality-ptsd-treatment.html
- http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17310883
- http://www.polaristratamentovirtual.com.br/
- http://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0111933
Sobre o autor
Cristiano Nabuco é psicólogo e atua em consultório particular há 32 anos. Tem Pós-Doutorado pelo Departamento de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Atualmente trabalha junto ao PRO-AMITI do Instituto de Psiquiatria do HC/FMUSP; Coordena o Núcleo de Terapias Virtuais (SP) e o Núcleo de Psicoterapia Cognitiva de São Paulo. Foi Presidente da Federação Brasileira de Terapias Cognitivas (FBTC). Publicou 13 livros sobre Psicologia, Psiquiatria e Saúde Mental.
Sobre o blog
Neste espaço, são discutidas ideias e pesquisas sobre comportamento humano, psicologia e, principalmente, temas que se relacionam ao cotidiano das pessoas. Assuntos centrais na construção de nossa autoestima, felicidade e vida. Seja bem-vindo(a)!